Empresas Sociais e Economia Social: fronteiras e oportunidades*

Silvia Ferreira

Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra; Centro de Estudos Sociais

Vez e Voz, 2019, ANIMAR

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Apresentação

As empresas sociais emergiram na Europa na década de 1990, sobretudo a partir de um grupo de investigadores/as, que procuraram compreender algumas inovações sociais ocorrendo no campo da economia social.

Mais recentemente este conceito ganhou nova proeminência, nomeadamente política, ao ter sido incluído nas políticas e prioridades europeias, extravasando para Portugal a partir de instrumentos como o Portugal 2020 e o Código dos Contratos Públicos.

O conceito é atualmente incontornável, mas também há ainda muita indefinição sobre os seus contornos e as suas fronteiras, em particular no que se refere à sua relação com a economia social e solidária e com as empresas lucrativas.

Importa, pois, ter presente o panorama atual e as oportunidades que oferece para o desenvolvimento local e a inclusão social, bem como para a resolução de problemas societais, nomeadamente os relacionados com a sustentabilidade ambiental.

 

A emergência do conceito de empresa social

O conceito de empresa social tem vindo a ser popularizado em Portugal e por todo o mundo. Todavia, é grande o debate sobre o que são empresas sociais. Para alguns, são empresas lucrativas com uma missão social, para outros são organizações da economia social. E, mesmo dentro destes campos há nuances diferenciadas. As empresas lucrativas podem ter simplesmente produtos e serviços que servem necessidades sociais, ou podem ter secções onde existe um equilíbrio entre a missão social e os objetivos lucrativos. Entre as organizações da economia social, tanto podem ser todas, como aquelas que têm aspetos de inovação social, ou de lógicas de governação democráticas abrangentes. Ou seja, há um sem número de significados no discurso corrente sobre as empresas sociais.

A emergência do conceito deu-se em 1990s, nomeadamente a partir da investigação levada a cabo no âmbito da Rede EMES[1]. Este conceito serviu para descrever uma nova realidade proveniente das organizações da economia social, que se distinguia das organizações tradicionais por ultrapassar fronteiras. Por exemplo, cooperativas com objetivos de inclusão social ou associações com componentes produtivas. A abordagem da Rede EMES provém da necessidade de entender estas novas realidades na Europa. No nosso caso, começaram por ser estudadas como empresas sociais as CERCI, mais tarde incluídas no grupo das cooperativas sociais, e as empresas de inserção e centros de emprego protegido, por desenvolverem atividades económicas como metodologia de inclusão social. Estas últimas são comumente descritas por empresas de inserção pelo trabalho (WISE) e são também um tipo de empresa social.

A Rede EMES descreve as empresas sociais como articulando três dimensões, social, económica e política. A saber, na dimensão social:  terem o objetivo explícito de beneficiar a comunidade; partirem de uma iniciativa de um grupo de cidadãos; terem uma distribuição de lucros limitada. Na dimensão económica: existir nelas uma atividade contínua de produção/venda de bens e/ou serviços; existir um nível de risco económico significativo assumido pelos seus fundadores; haver uma quantidade mínima de trabalho assalariado na organização. Na dimensão da governança:  não estar o poder de decisão na organização baseado na propriedade do capital; possuírem uma natureza participativa que envolve as pessoas afetadas pela atividade; possuírem um elevado grau de autonomia em termos de gestão.

Existe, pois, na identificação destas dimensões, uma ressonância com os princípios da economia social que encontramos na Lei de Bases da Economia Social, similares aos princípios identificados internacionalmente, como o primado do individuo e dos objetivos sociais, a conciliação entre os interesse dos membros, beneficiários e utilizadores e o interesse geral e o reinvestimento dos excedentes obtidos na prossecução das suas atividades, o caráter de participação voluntária, a gestão autónoma e independente das autoridades públicas e o controlo democrático pelos membros

 

As empresas sociais e a política europeia

A Comissão Europeia tem sido um dos atores mais ativos na promoção das empresas sociais, nomeadamente a DG Crescimento, sendo um dos seus programas a Social Business Innitiative. Define empresa social[2] como:

Uma empresa social é uma operadora da economia social cujo objetivo principal é ter um impacto social em vez de gerar lucro para seus proprietários ou acionistas. Opera fornecendo bens e serviços para o mercado de uma forma empreendedora e inovadora e usa seus lucros principalmente para alcançar objetivos sociais. Ela é gerida de forma aberta e responsável e, em particular, envolve funcionários, consumidores e partes interessadas afetadas pelas suas atividades comerciais.

 

Refere a Comissão que não há uma só forma legal para as empresas sociais. Elas podem ser cooperativas, empresas de responsabilidade limitada, associações mutualistas, associações, organizações voluntárias, organizações de caridade ou fundações.  Identifica ainda quatro áreas principais de atividade:

·       Integração laboral, incluindo formação e integração de pessoas com deficiência ou desempregadas·       Serviços sociais pessoais, incluindo saúde, bem-estar, cuidados médicos, formação profissional, serviços de saúde, de apoio à infância e aos idosos ou ajuda a pessoas em situação de desvantagem·       Desenvolvimento local de áreas em situação de desvantagem, como em áreas rurais remotas, desenvolvimento e reabilitação em zonas urbanas, ajuda ao desenvolvimento e cooperação para o desenvolvimento·       Outras áreas como reciclagem, proteção ambiental, desporto, arte, cultura, preservação histórica, ciência, investigação e inovação, proteção do consumidor e desportos amadores

 

Esta política influenciou os fundos estruturais, com expressão no Portugal 2020. Podemos fazer um exercício de aproximação entre as áreas temáticas identificadas pela Comissão Europeia e as prioridades dos fundos estruturais. Este exercício destina-se apenas a perceber a inclusão das empresas estruturais nas várias linhas de apoio à sua promoção, sendo que em quase nenhum caso estes fundos são particularmente orientados para as empresas sociais.

Na área dos serviços sociais, onde atuam muitas organizações da economia social, a promoção de empresas sociais é explicitamente referida numa das prioridades de investimento “Promoção do empreendedorismo social e da integração profissional nas empresas sociais e da economia social e solidária para facilitar o acesso ao emprego” (POISE[3]). Esta prioridade concretiza-se sobretudo através da iniciativa Portugal – Inovação Social, que visa criar um ecossistema de inovação e empreendedorismo social, e na melhoria da capacitação institucional dos Parceiros do Conselho Nacional para a Economia Social (CNES).

Na área da integração laboral, as empresas sociais de integração pelo trabalho podem encontrar enquadramento nos apoios previstos nas prioridades “Criação de emprego por conta própria, empreendedorismo e criação de empresas, incluindo micro, pequenas e médias empresas inovadoras” e “concessão de apoio ao desenvolvimento dos viveiros de empresas e o apoio à atividade por conta própria, às microempresas e à criação de empresas”. Visa-se promover a criação de emprego sustentável para pessoas desempregadas através de várias medidas, nomeadamente criação de empresas. As empresas sociais são referidas nos Planos Regionais entre as entidades beneficiárias destas medidas (Centro, Norte, Alentejo, Algarve). Os PO dos Açores e do Algarve são mais específicos no que se refere ao apoio a empresas sociais de inserção pelo trabalho. Nos Açores há uma medida específica para apoio a empresas sociais que inclui, por exemplo, capacitação das instituições do setor da economia social e apoio a estruturas que prestam serviços de proximidade para criar novos empregos. Já o PO do Algarve inclui entre as medidas “Criação de redes de empresas e de emprego apoiado de base territorial”, onde inclui o apoio às empresas de inserção pelo trabalho com uma dimensão ambiental (as chamadas ECOWISE, em terminologia europeia). Pretende-se a criação de uma empresa em cada município do Algarve, com trabalho de inserção voltadas para a reciclagem de aparelhos domésticos. Pretende-se ainda organizar uma rede de produtores locais agregados em empresas sociais, incluindo as empresas de inserção pelo trabalho.

Também o POISE possui algumas linhas de apoio que podem ser usadas pelas WISE, como o Coopjovem, para Apoiar jovens NEET na criação de cooperativas e o apoio a centros de recursos para a inclusão de pessoas com deficiência e incapacidade.

Na área do desenvolvimento local em áreas rurais e urbanas em situação de desvantagem podemos referir-nos ao instrumento Desenvolvimento Local de Base Comunitária (DLBC), que visa promover, em territórios específicos, a concertação estratégica e operacional entre parceiros. O Acordo de Parceria prevê nos DLBC urbanos a promoção da inclusão social através de medidas de inovação social e de empreendedorismo social e nos DLBC rurais e costeiros “promoção do emprego (sustentável e com qualidade), da integração urbano-rural e, de forma complementar, na promoção da inovação social e na resposta a problemas de pobreza e de exclusão social.” Também estes DLBC podem promover a criação de empresas sociais. Por exemplo, no Centro, é apoiada a criação de emprego ou empresa para promoção do emprego, e a criação de empresas “na área da valorização e exploração de recursos endógenos, do artesanato e da economia verde, que sejam geradores de novos empregos, além da conservação, proteção, promoção e desenvolvimento do património natural e cultural”[4].

Finalmente, ainda em torno das outras áreas de intervenção no ambiente, desporto, património, cultura, investigação e inovação, proteção do consumidor,  alem das atividades que podem ser desenvolvidas pelas empresas sociais no âmbito das áreas anteriores, é ainda possível encontrar mecanismos de apoio no Objetivo Temático 1 – “Reforço da investigação, do desenvolvimento tecnológico e da inovação”, nomeadamente na promoção do investimento das empresas em I&D e ligação aos centros de investigação e universidades para o desenvolvimento de produtos e serviços que tenham caráter de inovação social, ecoinovação e aplicações de interesse público, entre outros.

 

A contratação pública e o conceito de empresa social

Outra das áreas onde as empresas sociais podem encontrar um meio favorável ao seu desenvolvimento é a da contratação pública, tendo em conta a recente revisão do Código dos Contratos Públicos (2017), na adaptação da diretiva europeia de 2014[5]. Esta diretiva europeia foi acolhida como geralmente positiva na medida em que têm em consideração a ligação que existe entre as especificidades da economia social e os objetivos de interesse público, mas também foi apontado que existem nela elementos que criam alguma ambiguidade. A medida em que ela poderá ser aproveitada para potenciar o desenvolvimento da economia social depende quer da sua transposição para a legislação nacional quer das interpretações na sua implementação.

A Social Platform, estrutura federativa de várias confederações nacionais de organizações da economia social tem apontado aspetos positivos e desafios relativamente à diretiva europeia[6]. Por exemplo, a possibilidade de contratos reservados para as organizações voltadas para a integração de pessoas com deficiência ou em desvantagem, tendo descido o critério de 50% de trabalhadores nesta situação para 30%. A Plataforma Social recomenda que as entidades que implementam estes contratos verifiquem se os objetivos de inclusão no mercado de trabalho estão incluídos na missão e tenham em conta a qualidade dos projetos de inclusão. A nova diretiva dá também uma maior ênfase à qualidade em detrimento do preço, permitindo considerações de ordem social e ambiental. O Best Price-Quality Ratio deve ser preferido em relação ao critério lowest price and lowest cost em particular para serviços sociais, de saúde e pessoais. A existência de contratos reservados para organizações da economia social em serviços sociais e de saúde requer uma interpretação adequada do modo como são definidos estes fornecedores e levanta problemas de continuidade do serviço dado estes contratos terem uma duração limitada de 3 anos, algo também apontado pelo Commission Expert Group on Social Entrepreneurship (GECES)[7]. Inclui-se, ainda, uma clausula social transversal obrigatória sobre a necessidade de que os fornecedores respeitam as normas nacionais, europeias e internacionais em matéria social, laboral, ambiental e de igualdade de género.

Em Portugal, a transposição deu-se próxima do texto da diretiva europeia, mas incluiu referência explicita às empresas sociais, nomeadamente:

  • A possibilidade de que em situação de empate o contrato pode ser adjudicado a uma empresa social ou a uma PME (Art. 74);
  • A inclusão de normas que se referem à possibilidade de reservar contratos para determinados serviços de saúde, sociais, educação e culturais para organizações que têm uma missão de serviço público ligada a esses serviços, que reinvistam os seus rendimentos ou os distribuam de forma participativa, inclua trabalhadores no capital social ou assentem a sua gestão em princípios participativos envolvendo os trabalhadores, os utilizadores e os stakeholders. Refere-se que as empresas sociais que cumpram estas condições também podem participar nestes contratos (Art. 250-D);

E ofereceu-se uma definição, a única que neste momento existe num documento oficial em Portugal:

São consideradas empresas sociais aquelas que se dedicam à produção de bens e serviços com forte componente de empreendedorismo social ou de inovação social, e promovendo a integração no mercado de trabalho, através do desenvolvimento de programas de investigação, de inovação e de desenvolvimento social, nas áreas dos serviços previstos no n.º 1 [serviços de saúde, serviços sociais, serviços de ensino e serviços culturais]”

 

Conclusão

Esta revisão do conceito e instrumentos para as empresas sociais permite perceber que este é um campo de oportunidades para o desenvolvimento de formas de intervenção que visam o interesse geral. As empresas sociais são uma inovação social que, em especial na Europa, nasceram associadas à economia social e a um conjunto de movimentos sociais que em finais da década de 1960 e na década de 1970 enunciaram um conjunto de críticas às lógicas institucionais vigentes, sejam elas no estado, no mercado, ou na própria economia social.

Coloca-se particular ênfase na questão da participação alargada dos stakeholders e no aprofundamento da democracia e em formas inovadoras de intervenção. Neste sentido, as empresas sociais encontram igualmente uma forte ressonância na emergência da economia solidária, onde são centrais os princípios da participação e os objetivos do aprofundamento da democracia.

Em Portugal, o conceito de empresa social foi marginal até há pouco tempo e só recentemente, e em grande medida pelo impulso das políticas europeias, veio a ser adotado. Tal explica alguma falta de mobilização da sociedade civil e o risco de se tornar um conceito top down cuja utilização será meramente instrumental.

Ainda há discussões e clarificações a fazer envolvendo os diversos atores deste ecossistema. Em Portugal, o Congresso Nacional da Economia Social produziu, entre as suas Recomendações, uma relativa às empresas sociais que refere: “As entidades de economia social não se revêm no conceito de ‘empresa social’ assente na forma de sociedade comercial, e recomendam que a definição e clarificação desse conceito seja realizada no quadro da Lei de Bases da Economia Social.” O Parlamento Europeu, produziu uma resolução com recomendações à Comissão sobre um estatuto para as empresas sociais e solidárias[8] onde faz referência à proteção do rótulo da economia social europeia e a prevenção da criação e exploração de empresas falsas, sociais e solidárias.

Seja como for o conceito está presente, havendo um potencial para as organizações que intervêm no terreno do desenvolvimento local e da inclusão social perspetivarem possibilidades de atuação. Isto inclui quer a sua participação neste debate, quer o uso dos instrumentos existentes para o desenvolvimento da sua missão.

* Investigação desenvolvida no âmbito do projeto TIMES – Trajetórias Institucionais e Modelos de Empresa Social em Portugal, desenvolvido no Centro de Estudos Sociais e financiado no âmbito do FEDER – Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional através do COMPETE 2020 – Programa Operacional Competitividade e Internacionalização (POCI) e por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia (https://times.ces.uc.pt)

[1] https://emes.net/

[2] http://ec.europa.eu/growth/sectors/social-economy/enterprises_en

[3] Programa Operacional da Inclusão Social e Emprego

[4] http://www.centro.portugal2020.pt/index.php/dlbc-desenvolvimento-local-de-base-comunitaria

[5] Directive 2014/24/EU of the European Parliament and of the Council of 26 February 2014 on public procurement, https://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/PDF/?uri=CELEX:32014L0024&from=EN

[6] http://www.socialplatform.org/wp-content/uploads/2015/10/Public_procurement_for_social_progress.pdf

[7] https://ec.europa.eu/docsroom/documents/24501/attachments/3/translations/en/renditions/pdf

[8] European Parliament resolution of 5 July 2018 with recommendations to the Commission on a Statute for social and solidarity-based enterprises (2016/2237(INL)). http://www.europarl.europa.eu/sides/getDoc.do?pubRef=-//EP//TEXT+TA+P8-TA-2018-0317+0+DOC+XML+V0//EN&language=EN